(Por Vinicius Rodrigues)
Tomé de Souza desembarcou no
Brasil há 460 anos, com a missão de por ordem na colônia. Por determinação do
rei, veio criar uma cidade fortificada para ser o centro do poder. Construiu
Salvador e colocou nos eixos o projeto português.
Na proa da nau Salvador, o
capitão sentiu que as ondas já não batiam com tanta força no grande caravelão e
conseguiu ver a mata exuberante e uma pequena movimentação na praia. Depois de
dois meses de uma viagem tranquila. Tomé de Souza era enfim apresentado à baía
de Todos os Santos, com um misto de ansiedade e resignação. Aos 46 anos, o
militar português, filho ilegítimo de um padre, vinha com imensa
responsabilidade: construir uma fortaleza em um povoado destruído por índios e
saqueado por franceses e transformar o território coberto por todas as
capitanias, então caótico, numa estrutura organizada e lucrativa, a serviço de
Portugal. Quando a frota atracou, começava a nascer a primeira cidade do Brasil.
A história de Tomé de Souza se
mistura com o da própria Salvador. Por isso, a data oficial de fundação da
capital baiana ficou sendo a mesma da chegada do governador –geral, ou 29 de
março de 1549, há exatos 460 anos. Ele veio com triplo mandato: capitão da
povoação e terras da baía de Todos os Santos, governador – geral da
capitania da Bahia e primeiro governador
– geral de todas as capitanias e terras do Brasil. Tinha á sua espera um
cenário desolador, com colonos dispersos, índios amotinados, franceses
contrabandistas, administradores ineptos. Na capitania da Bahia, em particular,
oficiais da corte calculavam existir de 5 mil a 6 mil guerreiros tupinambás,
para cerca de 100 colonos.
(NA CHEGADA DE TOMÉ DE SOUZA COM
A ESPADA, A RECEPÇÃO TRANQUILA, GRAÇAS A CARAMURU).
O antigo donatário, Francisco
Pereira Coutinho, chamado Rusticão por seus modos violentos, fundara em 1536,
na ponta do Padrão, onde hoje está o farol da Barra, a vila Velha (ou vila do
Pereira). Mas os maus tratos infligidos pelos colonos aos índios, com a
permissão do donatário, provocavam levantes frequentes. No mais violento deles,
em 1545, a vila foi arruinada e Coutinho, obrigado a fugir para a capitania de
Porto seguro.
Um ano depois, ao voltar, naufragou
próximo à ilha de Itaparica, onde foi preso e devorado pelos tupinambás.
Com a morte do donatário Rusticão,
a capitania da Bahia reverteu à coroa e foi escolhida para se tornar a sede do
governo – geral que se formava. Passados quase 50 anos do descobrimento do
Brasil, tirando a próspera capitania de Pernambuco, quem mais se aproveitava
dessas terras eram os franceses, que mantinham melhores relações com os índios
e voltavam com as embarcações transbordando de pau-brasil. A falta de controle
português sobre a colônia brasileira era tanta que, em 1548, Luis de Góis,
irmão de Pero de Góis (donatário de São Tomé), pediu socorro ao rei dom João
III: “Se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre estas capitanias e
costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza
perderá a terra”, escreveu.
ARMADA DE MIL HOMENS
Foi à gota d’água. Portugal não
extinguiu as capitanias (o que só aconteceria em 1821), mas decidiu concentrar
o exercício do poder sobre o território em uma nova cidade. A instituição do
governo-geral, em 1548, é considerada uma evolução do Estado monárquico em
Portugal, cada vez mais centralizador, mas também uma medida saneadora. Estava na
hora de tomar posse efetiva do Brasil e fazê-lo render.
Para cumprir sua missão, o
primeiro governador – geral do Brasil veio preparado. Sua armada reunia três
naus (Salvador, Conceição e Ajuda) duas caravelas (Leoa e Rainha), um,
bergantim (São Roque) e duas outras naus de comércio, que deveriam voltar cheias
de pau –brasil. Embarcadas, estima-se de 500 a mil pessoas, entre 130 soldados,
90 marinheiros, 70 profissionais (carpinteiros, ferreiros, serradores etc.),
funcionários públicos, jesuítas comandados por Manoel da Nóbrega, 500
degredados e outros peões para o trabalho pesado.
Debaixo do braço, Tomé trazia o
Regimento do Governador e Capitão Geral, com as ordens do rei dom João III,
redigido em 17 de dezembro de 1548. Com 48 artigos, determina a fundação da
cidade – fortaleza e trata da defesa militar da costa, das relações com os
índios, de doações de sesmarias, cobrança dos proventos devidos á corte. “Foi o
que alguns chamam de a primeira Constituição do Brasil”, diz o historiador Cid
Teixeira.
Quando o grupo de Tomé de Souza
desembarcou, foi muito bem – recebido. “Achamos a terra de paz e 40 ou 50
moradores na povoação que antes era. Receberam –nos com grande alegria”,
escreveu Manuel da Nóbrega.
Mas se as relações com os índios
eram tão tensas, como explicar a acolhida descrita pelo jesuíta? Graças á
presença, em terra, de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, aliado dos índios e
mediador indispensável aos propósitos portugueses.
Dois meses antes da chegada da
armada, o rei mandara carta a Caramuru
pedindo sua colaboração: “ porque sou informado, pela muita prática e
experiência que tendes essas terras e da gente e costume delas, o sabereis bem
ajudar e conciliar, vos mando que quando o dito Tomé de Souza lá chegar, vos
vades para ele, e o ajudeis no que lhe deveis cumprir e que vos encarregar”.
Uma vez em terra, umas das
primeiras medidas de Tomé foi reagrupar os colonos. Dessa vez, não ocupou a
ponta do Padrão, aberta ao mar, á mata e, por isso, vulnerável. A 5 quilômetros
da vila Velha, o governador –geral encontrou uma colina que caía verticalmente
sobre a praia. Era o ponto mais alto da região, uma perfeita defesa natural,
com fontes de água e um rio (das Tripas), na direção oposta ao mar. Surgia a
cidade Alta, que ainda hoje registra um desnível em relação à cidade Baixa, em
Salvador, de 70 metros. As obras começaram já em abril, menos de um mês depois
do desembarque. Ajudado por Manuel da Nóbrega, na catequese, e por Caramuru,
Tomé incorporou os índios aos esforços de edificação, para compensar a escassez
de mão-de-obra portuguesa. O trabalho
indígena era forçado ou pago com foices, enxadas, tesouras, espelhos, pentes e
anzóis.
MÃO NA MASSA
A primeira cidade oficialmente
fundada na colônia – até então só existiam vilas – seria capital do Brasil por
mais de dois séculos, de 1549 a 1763. Seu traçado foi inspirado nos modelos
florentinos do Renascimento, mas à moda rústica.
A muralha ao longo da cidade era
de taipa, o mesmo material aproveitado para construir as casas (inclusive a do
governador), que tinham teto de palha e baixo (1,70 metros de pé – direito). “Eventualmente,
utilizavam-se tapetes de pele de onças-pintadas, mas nunca faltava à rede de
algodão, chamada ‘rede de bugre’, cujo uso os portugueses aprenderam com os
indígenas”, escreve Eduardo Bueno, no Livro A Coroa, a Cruz e a Espada.
Enquanto os prédios da administração pública e as moradias ficavam no alto da
colina, na Cidade Baixa estava o aparato do porto: ancoradouro, armazéns, Casa
de Fazenda e Contos e a Casa de Pólvora (uma das raras de pedra).
Tomé se mostrava dedicado a
cumprir o regimento do rei.
E, aparentemente, gostava de dar exemplo,
trabalhando com os peões nos canteiros de obras. “Onde ouvi dizer a homens do
seu tempo (que ainda alcancei alguns) que ele [o governador-geral]era o primeiro que lançava mão do pilão para os
taipais e ajudava a levar a seus ombros os caibros e madeiras para as casas”,
escreveu frei Vicente do Salvador, em Histórias
do Brasil 1500-1627.apesar de alguns historiadores duvidarem da versão do
frei, escrita no século 17, o mero registro dessa imagem de administrador
diligente revela a habilidade política do governador. “Tomé de Souza dominou as
más paixões pela singeleza do seu caráter”, diz o professor Braz do Amaral, no
livro Resenha Histórica da Bahia.
Muito antes de Amaral, o cronista
português Gabriel Soares de Souza, que veio para a Bahia em 1565, contou em seu
Tratado Descritivo do Brasil que “o
gentio [como chamavam aos índios] por
muito tempo viveu muito quieto e recolhido, andando ordinariamente, trabalhando
na fortificação da cidade a troco do resgate [escambo]que por isso lhe davam”.
Valendo-se, assim, da mão-de -
obra de um povo que, a princípio, não tinha porque lhe servir, recebendo apenas
ferramentas e utensílios, Tomé conseguiu erguer a cidade.
“Ele foi muito bem recebido pelos
colonos e tinha um bom relacionamento com os índios”, explica a professora
Consuelo Ponde de Sena, Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia.
CORTEM AS ORELHAS
Mas nem tudo era um mar de rosas.
Uma fonte de preocupações era a manutenção da ordem numa população formada, em
grande medida, por ex - presos enviados pela coroa. A primeira condenação por
furto em Salvador data de 1550, e envolveu justamente um degredado, Sebastiam d’Elvas.
Pelo crime, segundo sua sentença, ele foi açoitado e “desorelhado”. Outro
problema era a ausência de mulheres na cidade. Não vieram mais que dez na
esquadra de Tomé. E os colonos começavam a se relacionar com as índias.
“Enquanto os índios eram
violentados submetidos e tomados como escravos ou para mandar vender no reino,
as negras [índias] eram raptadas ou
presas para mancebas dos brancos, com os quais viviam em escandalosas
poligamias”, escreveu o antropólogo Thales de Azevedo, em O povoamento da cidade de Salvador. Alarmado, Manuel da Nóbrega
pediu ao rei, quase em desespero, que mandassem mulheres portuguesas, mesmo que
de má reputação. Dom João III enviou seis órfãs, em 1551, e incumbiu o
governador de casá-las. Ele obedeceu, mas tão exíguo suprimento de noivas não
serviu para impedir a miscigenação.
O próprio Tomé de Souza não
escondia as saudades da mulher e da filha. Em carta de 1552, tenta convencer o
rei, “por amor de deus”, que o devolvesse ás duas, em Portugal. Mas, antes de
voltar, ele teria de percorrer a costa para vistoriar as capitanias do Sul. Ao
lado de Manuel da Nóbrega, foi até São Vicente, passando por Ilhéus, Porto Seguro,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Angra dos Reis. “todas as vilas e povoações de
engenhos desta costa fiz cercar de taipa com seus baluartes (...) e lhes dei
toda a artilharia que me pareceu necessária”, diz, em carta ao rei de junho de
1553. A missão estava cumprida. O seu mandato, que inicialmente duraria três
anos, já havia passado de quatro.
De fato, desde março daquele ano,
ele já não era governador-geral. A seu pedido, o rei nomeou para o posto Duarte
da Costa, que chegaria à Bahia em julho. O meirinho correu para avisar Tomé,
que, apesar de ter pedido tanto para partir, não reagiu com alívio, mas perplexo.
“Vedes isso, meirinho? Verdade é que eu desejava muito, e me crescia água à
boca quando cuidava em ir para Portugal, as não sei que é que agora se me seca
a boca de tal modo que quero cuspir e não posso”, teria dito, segundo frei
Vicente.
Assim terminava mais uma demanda
daquele fidalgo – nas palavras de Gabriel Soares Souza, “honrado, ainda que bastardo
homem avisado, prudente e mui experimentado na guerra da África e da Índia,
onde se mostrou mui valoroso cavaleiro em todos os encontros que se achou”.
Tomé de Souza pode, então, voltar a Portugal, onde morreu, em 28 de janeiro de
1579. Deixou de pé, no Brasil, os pilares de uma cidade com incrível
personalidade política e cultural.
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Fonte: Revista Abril – Aventuras na
História – Edição 68 – março de 2009 – página 47 a 51.
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